domingo, 23 de agosto de 2009

Traição

Coisas engraçadas acontecem. Hoje escrevi uma poesia, e quando a terminei, me vi traindo uma das coisas que mais acredito, em partes. Revoltei-me contra Heráclito. Bizarro, não? Logo Heráclito? Depois de reler dezenas de vezes o que escrevi, constatei algumas coisas. Vou transcrever a poesia e depois farei alguns comentários sobre.

Corro por entre as paredes
Que fazem círculo deste labirinto.
Nado rios de absinto
À procura da saída.

O tempo passa, nada muda
A paisagem, o rio, a água,
Até mesmo a minha mágoa,
Tudo parece imutável.

Eu acreditava na mudança,
Agora não sei se nem tudo é o que parece
Só sei que não importa por onde eu comece
Para lá, sempre voltarei.

Aquela mesma confusão
Ainda presente na minha memória
Vejo se fazer a mesma história
Sabendo eu, o fim.

Refleti sobre o que eu havia escrito. Vi-me diante de um dilema dos brabos. A questão é que eu não sei mais se toda mudança é realmente uma mudança (mudança relacionada ao ser, de qualquer coisa ou evento).


Talvez se eu disser que nem toda mudança é uma mudança, eu esteja traindo de forma brutal aquilo o que eu acredito, porque a mudança estaria sendo de certa forma imutável, ou seja, não há mudança. Eu estaria destruindo a minha crença (se é que assim posso dizer) com ela mesma. "Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Dissipa-se e reúne-se; avança e se retira." Heráclito de Eféso, fragmento 91.

Bem, se não há mudança no rio, na paisagem, ou em quem entra no rio, há como entrar duas vezes no mesmo rio sim. Mas aí lembrei, para não me sentir culpada, do fragmento 49a de Heráclito: " Descemos e não descemos nos mesmos rios (...)". Ou seja, com a mudança, o rio se torna diferente, se torna outro rio, mas ainda é o mesmo.

Mas podemos analisar a minha dúvida sob uma outra luz. Se segundo Heráclito as coisas são e não são (frag. 49a, antítese a fala de Parmênides), a mudança também pode ser e não ser. A mudança pode ser imutável, não surtir efeito. É uma mudança, mas que não muda nada. Acho que tudo é o ponto de vista.

Bem, antes eu tivesse parado no questionamento acerca da mudança. O problema maior é que eu citei Parmênides. Acredito que essa tenha sido a facada mor. Pensei, pensei. Não é possivel que eu concorde com Parmênides, vá contra Heráclito. Foi aí que tudo se esclareceu pra mim, que tudo se encaixou. Eu não estava indo contra Heráclito. Percebi uma coisa curiosa.

Fiz referência ao fragmento 5 de Parmênides "Pouco me importa por onde eu comece, pois para lá, sempre voltarei novamente." E de fato, acredito nisso, e isso tinha me deixado assustada. Fiz uma articulação desse fragmento de Parmênides com a obra de Heráclito.

A minha interpretação para este fragmento é que, não importa o caminho que eu tome, o fim será sempre o mesmo, eu voltarei sempre pra onde comecei. Isso indica duas coisas:
  1. A vida é só princípio, um ciclo, onde o final é sempre princípio e o princípio é final;
  2. Todos os caminhos levam a uma mesma coisa.

Acerca do tópico 1. Ora, com estepensamento, Parmênides, podemos concluir que a avida é como um círculo, um ciclo, onde o final é o princípio e o princípio é o final. Este pensamento está em concordância com o fragmnto 103 de Heráclito: "Na circunferência, o princípio e o final se confundem." Ou seja, há como ser e não ser ["Descemos e não descemos nos mesmos rios, somos e não somos", Heráclito, frag. 49a], pois em medida que se faz final, já é princípio e vice-versa. Se eu voltarei pra onde eu comecei, o final se faz onde foi o princípio. Eles se confundem porque "[...] a mudança de um dá o outro reciprocamente" [Heráclito, frag. 88]. Princípio e final são contrários, mas constituem um binômio, a mesma coisa, são somente um.

Acerca do tópico 2, podemos dizer que se todos os caminhos levam a uma mesma coisa, para efeito, são os mesmos cominhos, e isso Heráclito também afirma no fragmento 59, que diz: "O caminho da espiral sem fim é reto e curvo, é um e o mesmo."

Ou seja, acredito que o 5º fragmento de Parmênides não seja o ideal para sustentar a imobilidade do ser, e acredito que quanto a esse fragmento, há até uma certa concordância com Heráclito, talvez seja por isso que de cara me encantei tanto com ele [o fragmento]. :p

Mas sinceramente, agora não discrimino tanto Parmênides. Sei lá porque. Antes eu tinha um puta preconceito com ele, mas parece que depois de algumas leituras, compreendi o ponto de vista dele. Acho que estou como o Calvin naquela tirinha sobre o "cubismo". Estou conseguindo enxergar de vários ângulos. Em partes, tá sendo horrível, confunde muito. Essa minha alta capacidade de compreensão às vezes me incomoda, às vezes me perjudica, às vezes me deixa a ver navios, às vezes faz com que eu [às vezes não, sempre] ceda por compreender o outro ponto de vista [mesmo que eu não largue o meu, na maioria das vezes]. A questão é, acho que estou conseguindo largar meus preconceitos. Acho que não odeio Parmênides tanto assim. Há falhas nos escritos dele, assim como há nos de Heráclito. Mas não sei, é uma questão de gosto, me identifico mais com Heráclito. Um dia quem sabe eu possa ler alguém que encontrou o meio termo entre os dois [que é no que eu acredito], quem sabe um dia eu mesma possa fazer isso?

Enfim, qualquer discordância, estou aberta a discussões, okay?

E-mail: lary.rfsl@gmail.com

Um comentário:

  1. Fabuloso.
    A poesia feita (que já fiz uma análise) e agora o surpreendente texto em que você trabalha com maestria aspectos da filosofia, fazendo o que é tão difícil e tão pedido, QUESTIONAMENTOS. Questionando a si próprio. Questionando os outros. Questionando o ato de questionar.

    Fato é que as citações enriquecem muito o texto, que você vai tecendo aos poucos e desenolvendo o seu questionamento.

    Verdade também é que concordar com Heráclito não significa necessariamente discordar de Parmênides, apesar de suas diferenças. Existem pontos de Parmênides que são utilíssimos, e você catou isso.

    Gosto de quando você chega a duas conclusões grandiosas.

    Só que... eu discordo veementemente da segunda. (desculpa)

    Acredito na realização de um ciclo. Falando em ciclo, usualmente iremos pensar em um círculo. Que existe um ponto de início, que irá se confundir como um final, nos fazendo não perceber o que é início ou o que é fim. Nisso eu concordo.

    Porém a afirmação "Todos os caminhos levam a mesma coisa" só pode ser usada na esfera macro de um pensamento cíclico. Pois se formos olhar pela esfera micro, é totalmente errada.

    A vida é feita de caminhos. Eu posso escolher fazer biologia, jogar futebol ou me matar agora. Isso desenvolverá diversos futuros diferenciados. Em cada um eu sou predestinado a cometer certo ato. Todos nascemos predestinados a diversas coisas, inevitáveis. Porém, o destino é mutável por nossas ações.

    Ao final dos três caminhos que poderei tomar, eu irei morrer. Logo entramos no velho ciclo. Só que não é um círculo normal, com apenas uma linha, e sim um grande círculo com grandes ramificações, que se entrelaçam, que se distanciam, que viram paralelas ou traços concorrentes. Porém, ao final, voltaremos ao mesmo ponto.

    A vida que nos foi dada, um momento será tirada. E voltaremos a estaca zero.
    Porém os caminhos que nos levaram até esse ponto final, apenas nós podemos definí-los.

    Siga em frente, minha querida.

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